Essa dimensão polêmica fica agora potencializada por coincidir sua exposição com o momento pré-eleitoral.
De fato, essas circunstâncias dão mais força a algumas imagens, como a de Lula sendo garroteado pelo artista e prestes a ser por ele degolado. Não poderia ser mais gritante o contraste que ela estabelece com a tão apregoada popularidade do presidente, que lhe garante 80% de aprovação dos eleitores.
Poderíamos ver esse contraste como um exemplo da diferença entre o funcionamento psíquico próprio das massas em oposição à forma de pensar do sujeito fora das massas. A psicologia das massas se caracteriza por sua identificação com um líder que ocupa o lugar de figuras paternas idealizadas.
Isso faz com que as massas adotem uma postura infantilizada frente ao líder, que é visto como um pai ou uma mãe que as protege e conduz, fantasia inconsciente muitas vezes deliberadamente manipulada pelo poder. Já o sujeito fora das massas - e ninguém mais que o artista para representar essa condição - mantém o espírito crítico frente ao líder e, apesar de não estar isento de nele também fazer projeções, pode vê-lo com mais objetividade. Para ele, tais "pais" ou "mães" são vistos como inimigos a serem eliminados. Ou seja, para o artista, a sociedade não deve ser regida por "pais" e "mães" onipotentes e sim por cidadãos como ele, a quem delega temporariamente o poder e de quem exigirá uma prestação de contas no seu devido tempo.
Em nosso caso brasileiro, à primeira vista podemos pensar que a posição infantil, dependente e acrítica das massas se deve à sua indiscutível ignorância. Tal ideia logo se mostra insustentável ao lembramos que essa mesma atitude foi tomada pelas massas letradas e instruídas da Europa frente a Mussolini e Hitler, no século passado. A popularidade do líder depende dos elementos psíquicos inconscientes já mencionados, reforçados por fatores advindos da realidade sócio-econômico-cultural.
Mas a dimensão política de Inimigos não pode ser confundida com uma estreita atitude panfletária ou partidária. O variado espectro ideológico dos líderes "assassinados" pelo artista mostra que o que está em jogo é algo maior, é a revolta crítica contra o poder instituído e seus infindáveis desmandos, é o cansaço e a saudável intolerância com os embustes e fraudes que se escondem nas pompas e circunstâncias que envolvem os mandatários.
A identificação daqueles que estão no exercício do poder com figuras paternas faz com que a observação de Inimigos possa evocar nos espectadores a fantasia do assassinato do pai.
Tal fantasia ocupa lugar central na teoria psicanalítica, sendo detalhadamente explorada nas elaborações sobre o complexo de Édipo (processo que estrutura o sujeito) e em Totem e Tabu (mito antropológico de larga envergadura criado por Freud para explicar a gênese da cultura).
De certa forma, podemos dizer que, nesses dois momentos, o assassinato do pai tem conotações diferentes. No complexo de Édipo, o pai é o rival frente ao objeto de desejo (mãe) e agente da interdição do incesto, o que possibilita o crescimento do filho, além de ser para ele um modelo identificatório. Em Totem e Tabu, o pai da horda primitiva é a encarnação da onipotência narcísica que impede o desenvolvimento dos filhos, vistos por ele como rivais a serem eliminados. Se o assassinato do pai teria efeitos catastróficos no complexo de Édipo, em Totem e Tabu ele é a condição necessária para o aparecimento da lei, da religião, da moral e da organização social, pois ao assassinato se sucede a culpa dos filhos, o que leva à internalização das leis do pai morto.
Se temos esse modelo freudiano em mente, a obra de Gil proporcionaria ao espectador uma dupla gratificação. Satisfaria seus desejos edipianos de matar o pai enquanto rival frente a mãe, ao mesmo tempo que remete ao assassinato do pai primevo, o tirano possessivo e violento que impõe seu desejo sem restrições, pois a lei só será instaurada após (e em função de) sua morte.
Diríamos que os poderosos que Gil Vicente "assassina" não são pais edipianos, portadores e mantenedores da lei. Os políticos estão bem mais próximos dos pais da horda primitiva, onipotentes e vorazes usurpadores que se colocam num espaço acima da lei e veem o poder como a oportunidade para dar vazão ao narcisismo mais predatório.
Sérgio Telles - Psicanalista
Jornal O Estado
http://amigosdofreud.blogspot.com/
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