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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

HARAQUIRI: a morte como metáfora





É curiosa a valorização do suicídio pelos japoneses, principalmente nos tempos belicosos do espírito samurai ou dos kamikaze. Hoje, nem tanto. É curioso porque se trata de um povo que fica na região considerada o lugar onde o sol nasce primeiro. A terra do sol nascente, o cálido berço do ser, o Oriente, que em latim quer dizer ‘fonte’, ‘origem’, do verbo ‘orior’, ‘levantar-se’, ‘elevar-se’.

 O fascínio dos japoneses pela morte - que vem da ancestralidade nipônica e está na raiz de sua ascensão cultural - risca a esfera do poético. Tanto é que o termo ‘shi’ denomina várias palavras, escritas com kanjis diferentes, entre as quais estão ‘morte’ e ‘poesia’.

 Mas vejamos o contrapé da curiosidade, apenas para quem lê com olhos poéticos, é claro. A palavra ‘suicídio’ vem do latim ‘sui’, que quer dizer ‘de si mesmo’, e ‘caedo’ ou ‘cídio’, o mesmo que ‘abater’, ‘cortar’, raiz também do verbo ‘cair’, que compõe de igual modo a palavra ‘ocidente’, de ‘occido’, ‘cair por terra’, que em outra flexão significa ‘assassinar’, ‘aniquilar’, o que sugere uma imagem contrária à do Oriente.

 A chave dessa interpretação são os verbos ‘cair’ e ‘cortar’. Logo, Ocidente é a região onde o sol cai, se põe, morre. Nesta parte do planeta há invariáveis modelos de morte pelas próprias mãos, como o caso narrado por Al Alvarez, em O deus selvagem, segundo o qual, certa moça polonesa “sentia uma paixão não correspondida e, num intervalo de cinco meses, engoliu quatro colheres, três facas, dezenove moedas, vinte pregos, sete ferrolhos de janela, uma cruz de bronze, 101 alfinetes, uma pedra, três pedaços de vidro e duas contas de rosário.”

 Neste caso, a maneira que a moça encontrou de se matar revela mais um ato de desespero, de pedido de socorro, do que propriamente um ritual suicida. E não é literário. Não traz nenhum recurso metafórico. Mas no Japão, a terra do sol nascente, cultivou-se uma forma original e singular de se cometer autoquíria: o haraquiri, que os japoneses também chamam de seppuku.

 No Japão, quase sempre que acontece algo de terrível na vida do indivíduo, que o coloca em situação vexatória diante da sociedade ou de sua família, de seus colegas, de seu chefe, ele cogita a possibilidade da própria morte. Até aí é sociologia e história (leia, por exemplo, O crisântemo e a espada, de Ruth Benedict, ou Japanese patterns of behavior, de Takie Sugiyama Lebra).

 Houve um tempo em que, nas mesmas circunstâncias, contudo, alguns executavam o haraquiri (‘hara’ = estômago, intestino – e ‘kiru’ = cortar), um ato de suicídio que penetra fundamente o reino da literatura. Não se tratava de cidadãos comuns, certamente, e hoje em dia, essa prática é condenada mais do que o próprio suicídio, que é tabu, como em qualquer cultura.

 O haraquiri é uma arte sinistra, de princípios que remontam ao Hagakure, código de honra dos samurais, antigos guerreiros japoneses que serviam aos xoguns, que eram como senhores feudais do Japão, cujo poder predominou até o século XIX.

 Sem querer entrar no mérito do caso Yukio Mishima, porque dá outro texto, uma vez que o escritor japonês – profundo conhecedor de sua própria cultura – cometeu haraquiri em 1970, sigo aqui sua explicação para o termo: Mishima dizia que os samurais valorizavam o seppuku como a força máxima da expressão do ser, da sinceridade de suas palavras. Sua técnica consiste num profundo corte cruzado sobre o estômago, cuja conseqüência é o sangramento até a morte.

 Quando um samurai cometia alguma falha perante o xogum, se sentia mal e pedia mil perdões ao seu senhor, como forma de demonstrar o arrependimento sincero. Mas quando a falha era muito grande, os samurais não encontravam outro modo de se desculpar senão se matando. Eles cometiam o haraquiri porque acreditavam que a sinceridade estava nas vísceras, e, nos casos extremos da dor do arrependimento, era preciso abri-las para demonstrar ao xogum sua lealdade e sua sinceridade.

 Com essa explicação, vê-se que a idéia não era morrer, embora soubessem que morreriam ao realizar tal ato. Neste caso, a morte não é o objetivo, é uma metáfora levada às últimas conseqüências. Partir o ventre, portanto, é abrir a janela da alma em seu grau máximo para deixar passar o íntimo da sinceridade. É o sol da explicação cortando o ocidente e chegando ao oriente da vida pelo avesso, para exprimir a sinceridade absoluta. Com tal gesto, os samurais queriam dizer que é nas entranhas que esgota e encerra a última verdade do ser.




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