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terça-feira, 16 de outubro de 2012

A razão, desde Freud

"Isso não é nada! Deve ser psicológico!” Quantas vezes frases do tipo não são proferidas ali, onde o discurso médico se depara com seus limites? 


Buscando tranquilizar o paciente quanto à natureza de seu sofrimento, o médico afirma algo do tipo: 

“Fique tranquila, você não tem nada. Seu sintoma é psicológico”. Sem se dar conta, o discurso médico, nesses momentos, acaba emprestando ao sintoma o estatuto de mentira, de falsidade.
Esse quadro não era muito diferente na Viena antes de Sigmund Freud (1856-1939). E foi contra esse silenciamento do sintoma que Freud se levantou. 
A premissa fundamental sobre a qual ele inventou a Psicanálise era justamente a de que um sintoma – fosse ele histérico, obsessivo, fóbico, paranoico –, traduzia algo da ordem da verdade. Mesmo que não houvesse nenhuma base orgânica reconhecível. Mesmo que não houvesse, na disposição do saber, uma figura capaz de acolher a espessura daquele sofrimento.
Esse “nada” ao qual o discurso médico reduzia o sofrimento psíquico foi elevado por Freud ao estatuto de uma verdade do sujeito. Para o inventor da Psicanálise, a inexistência de um substrato orgânico para a doença não queria dizer que o sintoma não fosse real. Mas de que real o sofrimento psíquico nos fala? Qual é o gênero de verdade posto pelo sintoma?
A essa altura, o leitor pode questionar: mas o que tudo isso tem a ver com Filosofia? Por que diabos um filósofo, ocupado com grandes temas acerca da razão e do conhecimento, do agir e dos valores, deveria preocupar- se com questões tão regionais, tão marginais, relativas ao sofrimento psíquico? O interesse filosófico da Psicanálise reside justamente aí. Sem que Freud tivesse procurado, ele esbarra em problemas e tradições externas à racionalidade psicanalítica. Ao construir sua metapsicologia, o arcabouço conceitual da teoria que fundamenta a prática de escuta e tratamento do sofrimento psíquico, Freud acaba formulando uma teoria do sujeito calcada em dois pilares: a estrutura inconsciente da atividade mental e o caráter pulsional da sexualidade humana.
Assim sendo, ele acaba questionando dois pilares da Filosofia Moderna: a equivalência entre subjetividade e consciência, e o postulado da autonomia da vontade. Ao deixar de caracterizar o sujeito pela transparência dos atos de consciência – desde Descartes, o conhecimento humano seria definido por meio da evidência para a consciência (tudo aquilo que é evidente para mim, na ordem das razões, deve ser verdadeiro na ordem das coisas) –, Freud estaria propondo abandonar o solo seguro da consciência como base da teoria da subjetividade. Além disso, ao mostrar o caráter pulsional da sexualidade, Freud estaria questionando a ideia, tão cara a Kant, de que só podemos ser responsabilizados por nossos atos porquanto agimos fundamentados unicamente na autonomia da vontade.
O conceito de pulsão diz justamente que, no domínio de nossas escolhas sexuais, incluindo aí as escolhas relativas ao nosso próprio ser, os móveis últimos das nossas escolhas não coincidem com o que designamos como “vontade livre”. Ao contrário, somos determinados, ao menos em parte, por fatores contingentes ligados à nossa história singular como sujeitos.
Por tudo isso, Jacques Lacan (1901- 1981) propôs o provocativo sintagma “a razão desde Freud” para indicar que a racionalidade moderna não poderia ser indiferente ao corte representado pela invenção da Psicanálise, como teoria e como dispositivo de uma práxis. Por exemplo, sem que pudesse adivinhar, Freud, ao acolher o sofrimento psíquico como uma verdade discordante em relação ao saber médico, acabou reafirmando uma tese filosófica cara à dialética. Hegel (1770-1831) dizia que verdade e saber são duas ordens separadas, que só coincidiriam no longínquo momento do saber absoluto. Mas, na experiência da consciência, saber e verdade entrariam numa espécie de conflito. A cada passo dado pelo saber, algo da verdade escapa a esta apreensão pelo conceito. Ora, a Psicanálise, diz Lacan, representa um novo sismo nas relações entre saber e verdade.
Mas isso não é tudo. Não apenas algumas ideias centrais da concepção filosófica acerca da subjetividade moderna são postas em xeque pela invenção da Psicanálise. Pois alguém poderia dizer: “Sim, é verdade, mas a estrutura da razão como tal não tem nada a ver como isso!” Mas não é bem assim. Freud, ao tratar do inconsciente, por exemplo, não está dizendo que algumas de nossas ideias são desconhecidas de nós mesmos ou que haveria uma zona escura da nossa mente habitada por fantasmas; que somos, no fundo, animais irracionais. Ao contrário, Freud está afirmando que o inconsciente é estruturado por leis sistemáticas. Que o pensamento, em si mesmo, antes de adquirir a qualidade inconstante da consciência, é inconsciente. Ou seja, ele está postulando que a própria razão não é mais a mesma, se admitirmos as ideias de inconsciente e de pulsão.
Muitas questões importantes se estabelecem desde então: é a Psicanálise uma Ciência? O que a Psicanálise pode nos dizer acerca da Ética e da responsabilidade? Os conceitos psicanalíticos servem apenas para pensar a prática clínica ou eles podem nos auxiliar a repensar a teoria social, as produções estéticas e a experiência religiosa? São questões deste tipo que a coluna que inauguramos hoje pretende abordar.
Gilson Iannini


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