O viajante está sentado no meio do mato, olhando uma casa humilde à sua frente. Já esteve ali antes, com alguns amigos, e na época tudo que conseguira notar foi a semelhança entre o estilo da casa e o de um arquiteto galego – que viveu há muitos anos, e jamais colocou os pés naquele local.
A casa fica perto de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e é toda construída com cacos de vidro. Seu dono, Gabriel, sonhou em 1989 com um anjo que lhe dizia: “Constrói uma casa de cacos.” Gabriel começou a colecionar ladrilhos quebrados, pratos, bibelôs e jarras partidas. “Tudo caquinho transformado em beleza”, dizia Gabriel de seu trabalho. Durante os primeiros quarenta anos, os moradores locais afirmavam que era louco. Depois, alguns turistas descobriram a casa, e começaram a trazer os amigos: Gabriel virou gênio. Mas a novidade passou – e Gabriel voltou ao anonimato.
Mesmo assim, continuou construindo; aos 93 anos de idade, colocou o último caco de vidro. E morreu.
O viajante acende um cigarro; fuma em silêncio. Hoje não está pensando na semelhança entre a casa de Gabriel e a arquitetura de A. Gaudí. Olha os cacos, reflete sobre sua própria existência. Também ela – como a de qualquer pessoa – é feita de pedaços de tudo que se passou. Mas, em determinado momento, estes fragmentos começam a tomar forma.
E o viajante relembra um pouco do seu passado, vendo os papéis em seu colo. Ali estão pedaços de sua vida: situações que viveu, trechos de livros que sempre recorda, ensinamentos do seu mestre, histórias dos amigos, fábulas que algum dia lhe contaram. Ali estão reflexões sobre o seu tempo, e sobre os sonhos de sua geração
Da mesma maneira que um homem sonhou com um anjo e construiu a casa que está diante de seus olhos, ela tenta ordenar estes papéis – para compreender sua própria construção espiritual. Lembra-se de que, quando criança, leu um livro de Malba Tahan chamado Maktub! e pensa: “Será que eu devia fazer o mesmo?”
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