O grito pegou Ariel de surpresa, e ele quase caiu
sentado. Olhou na direção do grito e viu um agitado Gabriel vindo na sua
direção.
- Pois não, mestre Gabriel, respondeu, sem se alterar.
- Recebi pela centésima vez o mesmo pedido daquela garota que quer um marido! Já não era para você ter providenciado?
- Bem, senhor, tivemos alguns problemas e...
- Como, problemas? Como podemos honrar o "peça e receberás" deste jeito?
- Bem, é que a moça mesmo está impedindo, senhor.
- Agora vai culpá-la, é?
- Como o senhor bem sabe, dependemos em parte dos humanos para um bom atendimento. Se quiser, posso contar-lhe o que já fizemos.
- Muito bem, conte-me. Gabriel já estava completamente calmo.
- Assim que recebemos o primeiro pedido, fizemos uma
pesquisa e identificamos um par ideal para ela. No dia propício, em que
ele estaria em um bar, sussurramos à moça uma sugestão para sair de casa
e ir até o bar. Ela aceitou bem. Lá no bar, providenciamos um esbarrão,
o rapaz tentou uma conversa, mas ela recusou-se a qualquer papo,
argumentando consigo mesma que não era mulher de dar papo para
estranhos. Nada pudemos fazer.
- Aí, esperaram um novo pedido.
- Sim. Ela o fez na sua igreja, uma semana depois.
Mas o "escolhido" já tinha se envolvido com outra moça, muito boa, por
sinal, e procuramos outro. Achamos. Desta vez a estratégia foi provocar
uma pequena batida dele no carro dela. Coisa insignificante. Só que ela
desceu do carro muito irada, disse uns palavrões e pra falar a verdade,
sequer olhou para o rosto dele. Observamos que ela internamente estava
visualizando um monstro, e não o homem que estava à sua frente.
- Mas vocês não previram esta reação?
- Sabíamos que era uma opção possível. Infelizmente,
foi a que ela escolheu. Bem, o homem ficou queimado de vez com ela, que
não é do tipo que perdoa facilmente.
- Poderia ser interferências cármicas? Como está o merecimento dela?
- Está suficiente, mas não o bastante para o atendimento automático.
- Bem, depois da igreja, foi aquele apelo desesperado, não?
- Sim, ela dizia que não agüentava mais. Nossa equipe
fez de novo a pesquisa, e localizamos um candidato, que não lhe
pareceria tão bonito quanto queria, mas se conseguíssemos um contato
mais prolongado, as chances seriam boas. Conseguimos que os dois
trabalhassem no mesmo andar. O rapaz conheceu-a, interessou-se e
convidou-a para sair. Você acredita que ela se fez de difícil? Ele então
ficou desinteressado; ainda tentamos inspirar-lhe persistência, e ele
tentou novamente, novamente foi esnobado e desistiu. Como não podíamos
interferir novamente, aguardamos novo pedido.
- Qual foi o diagnóstico, até aqui?
- Temos obstáculos sérios com relação a algumas
crenças dessa moça, muito estáveis e firmes. Por exemplo, ela acha que
se se fizer de difícil, atrairá mais atenção. Como não tem observado o
resultado dos seus comportamentos ao aplicar essa opção, não consegue
atualizar essa regra. Outro ponto difícil é o foco excessivo em si
mesma; ela ainda não percebeu que pode manter duas referências
simultâneas. Um ponto significativo é uma crença da qual ela não tem
consciência, de que não merece o melhor, veja só. De maneira geral, as
suas crenças e regras, e não o resultado desejado, têm prevalecido, e
nossa atuação em sua intuição não é percebida.
- Já tentaram abalar toda essa firmeza? Ela seria beneficiada como um todo, com um pouco mais de flexibilidade.
- Tentamos, mas ela teve uma reação inesperada:
julgou que estava desestruturada e com problemas, sentiu-se muito mal e
tivemos que parar. Pareceu-nos que ela não suportaria a fase de
transição. Você sabe que esse tipo de rigidez quase sempre só é quebrado
com a ajuda de algum tipo de dor. Como o bom carma dela impede dores
nesse nível, mesmo que transitórias, temos um círculo vicioso. A menos
que ela própria perceba, não haverá meios de melhorar este aspecto.
- É, Ariel, temos um caso difícil. Precisamos prever melhor as reações dela, e evitar novos fracassos no futuro. Há novo pedido?
- Sim, mas o último veio mais fraco, ela está com a
fé abalada. Isto piora nossas chances. Antes tivesse a mesma rigidez
nisso também.
- Temos que achar um jeito que funcione. Pense em algo.
- ARIEL!
- Sim, mestre.
- O que vocês fizeram? Ela está se casando! Sinto que não fizeram coisa boa.
- Bem, fizemos uma pequena concessão neste caso. Ela
estava numa festa, e conversava com um candidato muito bom e dócil às
nossas sugestões. Mas as projeções de possibilidades que ela estava
fazendo de si mesma com o moço indicavam que logo ia dispensá-lo.
Interferimos em seus pensamentos colocando imagens de estar com ele e
conversar alegremente, de dançar e outras coisas que sabíamos que seriam
prazerosas para ambos. As emoções resultantes imediatamente aumentaram
sua atração, e os dois acabaram se beijando. Dentro das crenças delas, o
beijo no primeiro encontro significa compromisso, e o relacionamento
foi mantido. Acha que fizemos mal, mestre?
- A interferência provocou outros efeitos em sua liberdade de escolha?
- Não. Observamos isto. Outros contextos de suas representações internas continuaram com as mesmas opções de antes.
- Foi induzida alguma emoção limitante?
- Um pouco de culpa, logo sobrepujado pelo contentamento. Quando voltarem explicaremos tudo.
- Serão felizes para sempre?
- É, mestre, você tem vindo pouco à Terra!
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