Coerentemente, Cronenberg considera que o cinema é essencialmente uma arte corporal. “Quase toda filmagem é física”, disse. “Não conseguimos fotografar um conceito abstrato. Estamos filmando corpos humanos, e sobretudo os rostos. Por isso, creio que qualquer diretor, se for absolutamente sincero, entenderá que no fundo o que faz é interpelar a matéria e a consciência desta. Mesmo quando filmo um diálogo, e ilumino as expressões de um ator, estou tentando captar o melhor possível seus malares e cabelo, seu sorriso e postura. Tudo é linguagem corporal, sólidos.”
Mas será preciso ir a ponto de mostrar o desmembramento de corpos, que implica até a invenção de fictícios instrumentos cirúrgicos, como em Gêmeos– Mórbida Semelhança (no qual Jeremy Irons interpreta um par de ginecologistas gêmeos, cada vez mais frankensteinianos)? Desta vez, o sorriso do cineasta é apologético. Alguém lhe acena do outro lado do lounge. É Don DeLillo, a quem, nessa mesma tarde, Cronenberg apresentará algumas cenas de Cosmopolis, com Robert Pattinson (que a imberbe saga Crepúsculo entronizou em divo planetário) e o excelente Paul Giamatti. DeLillo e Cronenberg esgrimem uma telegráfica mímica anglo-saxônica e depois o romancista sai de cena, com um floreadoirônico de cortesão. Aí ele disse:
Sim, a truculência. Sou uma pessoa completamente pacífica. Aos 68 anos, nunca na vida dei um murro em ninguém. Bom, talvez no travesseiro. Em gente, nem mesmo um peteleco. Mas a cada segundo é cometida uma violência no mundo, e ela tem de ser absorvida e encarada. Não conseguimos escamotear esse fato, especialmente hoje em dia. É sempre terrível. Tampouco sustento que a violência seja sempre injustificável, pois se você é atacado por alguém que quer matá-lo por razões abstratas – digamos, doutrinas políticas ou religiosas – é natural que tenha o direito de se defender. Mas a violência jamais é desejável, eis o meu ponto de vista. Até porque sou ateu e não acredito em outra vida. Para mim, o assassinato é um ato de destruição absoluta. Destrói-se uma criatura que nunca existiu antes e nunca existirá depois. Por outro lado, faz parte da condição humana morrer…
David Cronenberg formou-se em literatura pela Universidade de Toronto. Recorreu a romances para cimentar vários filmes, passando por autores como J. G. Ballard e DeLillo. Em Crash, inspirado em um livro de Ballard, pessoas que ficaram pavorosamente feridas em acidentes automobilísticos tentam encarar o infortúnio “mais como um acontecimento criativo do que destrutivo”.Uma das incursões mais radicais do cineasta no âmbito literário foi a adaptação cinematográfica de Almoço Nu, de William Burroughs, um livro consensualmente considerado “infilmável”. David franziu a testa: “Eu sabia perfeitamente que uma filmagem fiel do romance custaria mais de 100 milhões de dólares – e seria proibida em quase todos os cantos do mundo.”
Assim, em Almoço Nu ele turvou sistematicamente a fronteira entre o que parece ser real e o que sugere não passar de alucinações e delírios gerados pela toxicodependência do protagonista. Numa sequência, por exemplo, um personagem partilha um balcão de bar com uma barata tamanho-família, que Kafka receberia de braços abertos. Atenção: a barata é um cliente regular, não uma clandestina que se esgueirou da cozinha. “Foi muito estranho, e ao mesmo tempo emocionante, pois, quando estava escrevendo o roteiro, senti uma sinergia total com o estilo literário de Burroughs”, disse. “Foi uma empatia tão forte, quase mediúnica ou oracular, que eu disse a Burroughs que, quando ele morresse, eu poderia prosseguir com a obra dele. Ele limitou-se a responder que esperava que eu morresse primeiro.”
Como Woody Allen, Cronenberg gosta de se rodear de uma equipe que já é uma espécie de clã. Walter Gasparovic, o primeiro assistente de direção, trabalha com o diretor canadense desdeeXistenZ, de1999. Ron Hewitt, diretor de arte, e Dug Rotstein, supervisor do roteiro, flanqueiam Cronenberg há mais de vinte anos. Denise Cronenberg desenha o guarda-roupa de todos os filmes do irmão desde A Mosca (1986)e Caitlin Cronenberg, filha do cineasta, é a fotógrafa de cena. Se é conservador no séquito, ele é aberto às inovações tecnológicas: em Cosmopolis pilotou uma Alexa, a recém-nascida câmera digital da Arriflex, que vem de embasbacar o mercado audiovisual.
Os três últimos títulos de Cronenberg – Marcas da Violência, Senhores do Crime e Um Método Perigoso – apresentam o ator Viggo Mortensen como protagonista. E configuram, talvez, outra guinada na sua filmografia. As proverbiais obsessões com metamorfoses genéticas são afrouxadas, em favor de narrativas mais convencionais, mas não no sentido comezinho ou filisteu. Os dois primeiros filmes são idiossincráticas histórias de gângsteres, e o terceiro é uma biografia deveras estilizada. A respeito disso ele falou o seguinte:
Não penso nos filmes que já fiz quando estou rodando um novo projeto. Já dá um trabalhão dirigir uma obra sem ficar ruminando se ela se encaixa como uma luva na minha filmografia, como uma espécie de heráldica ou árvore genealógica. É muito difícil fazer um filme, pelo menos de acordo com as minhas exigências: uma equipe na qual confio e que me apoia, o elenco adequado, o orçamento necessário. Por isso, nunca penso em mim separado da minha carreira. Nunca entendi como alguns produtores chegam para mim e exclamam: ‘Ah, este projeto pode não ser tão bom para você, mas vai ser ótimo para sua carreira.’ Como se a minha carreira fosse um cachorrinho lulu que eu estivesse levando para dar uma voltinha.
A Mosca, que foi uma nova versão de um filme de 1958, é o seu filme de maior sucesso de público até hoje – ganhou inclusive um Oscar técnico. Nele, o diretor fez uma ponta, como… ginecologista. E o filme não para de gerar novas mosquinhas, a maior parte delas mortas (esteticamente falando). Em 1989, despontou A Mosca II,que ele não dirigiu esobre o qual quanto menos se falar, melhor. Se pudesse, Cronenberg bombardearia inseticida no epígono. Por outro lado, ele escreveu nada menos que o libreto de uma ópera baseado no seu filme. E até admite rodar uma sequência (ou sequela), com uma condição inegociável: “Não seria uma continuação, mas uma história paralela.”
Um Método Perigoso é um dos melhores filmes do repertório de David Cronenberg, talvez até o melhor de todos. Aplica uma acachapante goleada cinéfila a Freud, Além da Alma,de John Huston, projeto arruinado pela escolha de Montgomery Clift para o papel principal (o astro parece muitíssimo mais neurótico do que qualquer um dos pacientes) e cujo roteiro, encomendado a Sartre, gerou uma imensa confusão.
Sartre até que aviou a encomenda, só que com uma incontinência torrencial. Somente a sinopse tinha quase 100 páginas. Depois, apresentou um calhamaço de dimensões balzaquianas. Huston suplicou-lhe encarecidamente que abreviasse a coisa, e o filósofo concordou. E não é que apareceu com outro roteiro ainda mais paquidérmico, que dava para rodar no mínimo uma fita de seis horas de duração? Huston fez uma lipoaspiração radical no texto, e o resultado foi um monstrengo sem pé nem cabeça. Outro equívoco de Huston foi tentar filmar uma espécie de “psicanálise para principiantes”: cada cena quase equivalia à ilustração de um conceito freudiano por ordem alfabética. Quem sabe se Marilyn Monroe tivesse subido a bordo – como quase fez –, a coisa se salvasse. Faltou no filme uma boa dose de princípio do prazer.
Cronenberg circunscreveu a história de Um Método Perigoso a um episódio poderoso e ao mesmo tempo fecundo – o envolvimento de Carl Jung com Sabina Spielrein e a atitude de Freud perante o fato. Nada de manual de instruções de psicanálise. Aqui, Freud (Viggo Mortensen), Jung (Michael Fassbender) e a Sabina (a ergonômica Keira Knightley) são personagens tridimensionais, e não bustos de bronze, mais ou menos imponentes e kitsch.
Além disso, Cronenberg teve a sorte que abençoa os audazes. Há algum tempo o verbete “Sigmund Freud” andava tacitamente eclipsado. Grosso modo, o habitante da Berggasse 19, em Viena, era visto cada vez mais como um pensador da cultura e menos como um cientista realmente confiável e consistente, criador de um novo enclave cognitivo. O “inconsciente” correspondia a uma Terra do Nunca. Eros e Tânatos foram reduzidos a simples metáforas, na melhor das hipóteses, mais ou menos como o Céu e o Inferno da doutrina cristã. “Inveja do pênis”? “Continente desconhecido”, “Eu e Super-Eu”? Frente à disseminação de antidepressivos e que tais, os conceitos tiveram pouco a oferecer. Tudo parecia indicar que, no século XXI, a psicanálise estaria para a psiquiatria como a astrologia está para a astronomia.
Cronenberg não se embrenhou em pantanosas querelas doutrinárias. Especialmente no Fla-Flu Freud versus Jung. O criador da psicanálise acalentou Jung como o seu delfim, na medida em que este apresentava várias vantagens sobre os rivais na sucessão: tinha pedigree científico (era médico, como Freud, ao contrário de inúmeros outros pioneiros), não era judeu (ao contrário de Freud e de muitos colegas) e era obviamente brilhante. A expectativa de Freud era tanta que, no último encontro entre ambos, quando Jung expôs a sua cisma, o pai da psicanálise desmaiou.
“Não segui nenhuma agenda política na Guerra Fria entre freudianos e junguianos”, disse Cronenberg. “O que me interessou foi mostrar como esses dois homens tinham a vívida percepção – quase visionária – de que haviam encontrado uma chave para a decifração do espírito e da condição humana. E, claro, a presença de Sabina Spielrein como o terceiro vértice do triângulo. Sim, para mim Freud, Jung e Sabina constituíram um triângulo amoroso, independentemente dos respectivos gêneros e das pulsões sexuais.”
Precisamente num filme habitado pela psicanálise, e banhado por paixões viscerais, Cronenberg refreou suas proverbiais efusões oníricas e alucinantes. E também a violência: se aqui há uma intensidade passional e tempestuosa, ela se limita à batalha de ideias. Nesse domínio, de fato há chumbo grosso.
Faz pouco mais de 100 anos que Sigmund Freud viajou para os Estados Unidos, acompanhado de seus discípulos Sándor Ferenczi e... Carl Gustav Jung. Freud detestava o país, uma terra de caipiras que tinham o topete de chamá-lo de “Sigmund”, como se fossem compadres. Numa carta a um amigo, datada de 1913, resmungou: “Não é triste que estejamos dependentes destes desprezíveis selvagens, que só pensam em dinheiro?” Mas os americanos não pensavam somente em dinheiro: como observou Mark Edmundson em A Morte de Freud: “Nenhuma nação, fora da Alemanha e da Áustria, foi mais receptiva à psicanálise do que os Estados Unidos.” Apesar disso, ao desembarcar em Nova Iorque, Freud sussurrou para Jung: “Viemos trazer-lhes a peste. E eles nem desconfiam.”
Sabina Spielrein foi, nas palavras de Peter Gay, talvez o biógrafo canônico de Sigmund Freud, “uma brilhante analista russa”. Em 1904, numa clínica de Zurique, aos 19 anos ela se tornou a primeira paciente de Jung, dez anos mais velho. E se apaixonou pelo seu médico, que era casado e tinha um filho. Sabina entendia que a relação tinha de se manter secreta, devido à ética profissional e ao estado civil do amado. Para Jung, estava de bom tamanho. Ele não perdia o sono por causa do tabu no relacionamento analista–analisando.
Numa carta datada de 1905, Jung descreveu Sabina no seu consultório “reclinada languidamente no sofá”, com uma postura “oriental e voluptuosa”, e uma “expressão sensual e sonhadora estampada no rosto”.O fetiche de Sabina era ser açoitada, e Jung, ao que parece, era adepto do ponto de vista de que o cliente tem sempre razão.
Cartas, aliás, foram uma fonte providencial para o filme, como disse Cronenberg:
Nunca negligenciamos o fato de que os três personagens principais foram personalidades históricas, e tentamos ser bastante rigorosos na representação de cada uma delas. É bom destacar que naquela época, em Viena, o correio entregava correspondência nada menos que cinco vezes por dia. Se você recebia uma carta de manhã, o remetente podia esperar uma resposta na mesma tarde. Era uma espécie de internet, de e-mail, de rede social primitiva. O pingue-pongue epistolar era, por isso mesmo, e ao contrário do e-mail, considerado uma forma de arte, com filigranas estilísticas e máxima acuidade descritiva. Daí que tenhamos imensa documentação sobre como as pessoas daquela sociedade sentiam e pensavam.
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