Uma
operação intelectual de indulgência à corrupção atribui ao moralismo
a ideia de que o poder pode não ser corrupto.
Um dos aspectos intrigantes da
política brasileira é o silêncio nas universidades e a ausência do
movimento estudantil no debate e nas manifestações contra a corrupção e a
impunidade, dois pilares tradicionais do poder da oligarquia, que foram
transformados agora no Brasil em política pública universalizada e em
padrão de governança. Isso se tornou intolerável para uma parcela
expressiva da sociedade, mas não parece sequer inquietar a juventude e o
meio acadêmico.
Há duas pistas óbvias a seguir
para chegar à razão dessa acomodação: a domesticação do movimento
estudantil pelo governo e o aparelhamento partidário das universidades. E
há outra, menos difundida, mas também relevante: o uso militante da
idéia de que “o poder nasce da corrupção”. Trata-se de uma assertiva do
repertório de condenação do capitalismo, da globalização e, junto com
isso, da democracia representativa. Mas aqui, ela passou a servir também
para legitimar a corrupção como arma política de supostos portadores da
verdade transformadora da sociedade, que no caso seriam o PT e seu
governo.
Esse pensamento germina num
ambiente de distanciamento e mesmo aversão à política, com a expansão na
juventude e no sistema de ensino de uma subjetividade ávida por
competência para vencer ou sobreviver no mercado e, portanto, com pouca
ou nenhuma disposição para questionamentos e muito menos para
engajamento em causas difíceis e conflituosas, como é o caso da campanha
anticorrupção e contra a impunidade.
Indignação e perseverança
O alarido na sociedade por uma
política mais comprometida com a ética e por uma justiça mais
republicana ganhou corpo no Brasil em meados de 2011, depois que o
jornalista Juan Arias, correspondente do jornal El País, nos chamou às
falas no artigo ‘Por que os brasileiros não reagem?’. O burburinho
inicial se tornou fato político a partir dos protestos de 7 de setembro.
De lá para cá, as manifestações não cessaram na rede e nas ruas.
Impulsionados, no começo, pela
indignação, os movimentos se multiplicaram no país e definiram uma
agenda substantiva. A perseverança na mobilização já rendeu avanços e
mesmo algumas vitórias, como o reconhecimento da constitucionalidade da
Lei da Ficha Limpa, a confirmação do poder do CNJ de investigar e punir
irregularidades de juízes, o veto a candidaturas com contas de campanha
reprovadas, a discussão de projetos para limitar o foro privilegiado e
ampliar a responsabilidade de autoridades, bem como alguns sinais de
mais diligência no Judiciário para o acolhimento e julgamento de ações
contra a corrupção.
Tudo isso, porém, é muito
pouco frente à pandemia de corrupção que o governo empreende com seu
esforço de reprodução de poder. Isso é exposto todo dia no noticiário da
imprensa crítica e nas redes sociais, dando conta da multiplicação de
fraudes em concorrências, desvios de dinheiro público, aparelhamento,
nepotismo e tantos outros vícios e malfeitos em todos os escalões.
Apesar disso, as universidades
e o movimento estudantil seguem omissos. Não se pode, porém, dizer que o
problema é totalmente ignorado neste estamento crucial para a reflexão e
ação da sociedade. Ouvem-se sim algumas vozes, mas não são contra a
corrupção e sim contra a imprensa crítica, que veicula os escândalos. E
teorias para desqualificar quem protesta, rotulando esta atitude de
hipocrisia moralista. De resto, o silêncio. Por quê?
As três pistas
Sabe-se que o PT cresceu e
chegou ao poder junto com os movimentos sociais e que estes passaram a
compartilhar os governos junto com o partido. Há avanços que podem ser
atribuídos a este processo, principalmente nas políticas sociais. Mas a
contrapartida tem sido a domesticação dos movimentos. Ou seja, o preço
dos ganhos sociais está sendo o enfraquecimento e o controle dos
movimentos pelas oligarquias, que facilmente assimilaram o PT e lhe
impuseram não só a prática da corrupção como forma de governo, mas
também a neutralização ou mesmo a anulação dos conflitos em nome da
governabilidade. A UNE, por exemplo, não passa hoje de uma repartição
pública. É uma caricatura melancólica e decrépita da entidade que, no
passado, combateu pela democracia e por todas as grandes causas da
sociedade brasileira. É esta a primeira pista.
Sabe-se também da grande
influência do PT nas universidades, principalmente na administração das
federais. Vale lembrar o manifesto dos reitores em apoio a Dilma nas
eleições de 2010. Imagine a milionária combinação de verbas,
patrocínios, bolsas, oportunidades e homenagens para alunos e
professores, manipuladas com esse aparelhamento. Quanta moeda de troca!
Pense também no potencial de patrulhamento de vozes discordantes. Esta é
a pista número dois. Frente a isso, as irregularidades na gestão das
universidades, descobertas já em 13 estados, são troco na conta do
prejuízo para a sociedade.
E há a referida operação
intelectual de indulgência à corrupção, entrincheirada na noção que
atribui “ao moralismo a idéia de que o poder pode não ser corrupto”, que
é a nossa terceira pista.
Podemos segui-la, desde 2005,
quanto eclodiu o escândalo do Mensalão. Naquela ocasião, o livro
‘Global: biopoder e luta em uma América Latina globalizada’ ia para o
prelo. E os seus autores, Antonio Negri e Giuseppe Cocco, incluíram nele
uma nota mantendo a avaliação positiva do Governo Lula, sustentada na
obra, mesmo que a acusação de corrupção fosse demonstrada nas
investigações que começavam.
Moral e ética
O argumento central é a
distinção entre moral e ética. A moral, sob esta visão, afirma-se a
partir de princípios abstratos, enquanto a ética é inseparável do
processo e dos sujeitos que a produzem. Daí, os autores assumem que “o
poder é sempre corrupto, pois é fruto da corrupção da democracia”. E
concluem: “o moralismo continua afirmando que a democracia
representativa deve ser ‘depurada’, quando é a própria representação que
implica corrupção”.
Mais tarde, em outro livro,
‘Goodbye Mr. Socialism’, Negri formula a tese da justificativa do
Mensalão com uma narrativa mais própria do vale-tudo da política:
“Pagaram sistematicamente aos pequenos partidos para que apoiassem as
leis propostas por Lula ao parlamento. Quem é corrupto? O sistema. De
outro modo, Lula não podia governar porque os partidos evangélicos eram
pagos pela oposição de direita. Assim funciona o poder”.
Como supor, porém, que as
regras do jogo da corrupção sejam ditadas pelos esclarecidos
estrategistas do PT em nome da salvação do povo? E o outro da relação?
Como considerar a corrupção sem o poder do corruptor? Que evidência pode
ser mais forte da submissão do PT às oligarquias que o uso da corrupção
como ferramenta privilegiada de reprodução do poder?
Cabe suspeitar, portanto, que
temos aqui um caso de suspensão da crítica ao poder quando se trata do
poder do amigo.
A influência de Antonio Negri
no PT e nos setores da academia caudatários do partido, não deve ser
menosprezada. A Filosofia reverbera pouco e em círculos muito restritos
dos partidos e mesmo da academia. Mas não se deve desconsiderar a força
do pensamento sobre a ação e a inação na política. Negri é um dos
principais renovadores do pensamento político contemporâneo.
Lamentavelmente, sua repercussão no Brasil decorre menos do que vem
produzindo de mais potente – como os conceitos de trabalho imaterial,
império, multidão e comum, entre outras contribuições para dar conta das
mutações na vida contemporânea – do que de sua militância.
Omissão e cumplicidade
Não é livre de controvérsia a
tentação do filósofo de transformar o mundo, buscando sentido prático
para as idéias. Boa parte da produção filosófica debate exatamente o
tema da ação. Embora seja da essência do filósofo político querer tornar
carne o seu verbo, também é fato que a teoria é uma caixa de
ferramentas que serve ao conhecimento. Querer que ela seja mais que isso
pode deslocá-la à condição de crença religiosa e levá-la a inspirar
calamidades, como a história demonstra. Outro pensador contemporâneo,
Slavoj Zizek sugere: “Leia Marx. Mas leia a 11ª. tese sobre Feuerbach ao
contrário, aquela que diz que os filósofos se limitaram a interpretar o
mundo, quando devemos transformá-lo. Devemos parar de querer mudar o
mundo às cegas, para interpretá-lo, saber o que ele é.”
Essa discussão nem ao menos é
nova. Hannah Arendt, uma das mais influentes pensadoras do século
passado, ao homenagear Martin Heidegger no livro ‘Homens em tempos
sombrios’, constatou “uma tendência ao tirânico” nas teorias de quase
todos os grandes pensadores: “não podemos sequer nos impedir de achar
chocante, e talvez escandaloso, que tanto Platão como Heidegger, quando
se engajaram nos afazeres humanos, tenham recorrido aos tiranos e
ditadores”.
Não parece que esta
constatação desqualifique ou mesmo diminua a tradição da Filosofia
Política, cuja fundação é reivindicada para Maquivel, e na qual Negri e
outros prestigiados pensadores contemporâneos se alinham. Mesmo
sobrepondo as razões do estado ao moralismo e defendendo que é melhor
vencer pelo ardil que pela força, Maquiavel não está necessariamente
apoiando a corrupção de hoje no governo brasileiro e não pode ser
responsabilizado pelos criminosos que se acobertam atrás do seu nome.
A obra de Negri certamente
persistirá e continuará produzindo ação, da mesma forma que as obras de
outros pensadores importantes. Mas inocentando a corrupção no Brasil,
ele dá, aos que estão sob sua influência aqui – intelectuais,
professores e estudantes – pretexto e fundamentação para a omissão e,
portanto, para a cumplicidade com o que há de pior na política
brasileira. Ironicamente, a indiferença é também uma das marcas da
subjetividade produzida por relações aviltantes, exacerbadas na economia
pós-industrial, que são criticadas pela teoria anticapitalista do
próprio Negri.
Altamir Tojal